A música dos Titãs jorrava da janela do bar da esquina. “Você tem fome de quê?”, e depois afirmava: “A gente não quer só comida”.
Jaime sentia fome de paz. Entrou no primeiro ônibus que dobrou a esquina, com sua mochila nas costas e apenas uma certeza: nunca mais voltaria. Não para o padrasto bêbado, nem para a mãe desalmada, de coração de gelo seco e fumaça branca saindo da boca. Não voltaria nem para a Nina e o Guto, que teriam uma vida melhor no apartamento que a Januza conseguiu do governo no bairro ao lado.
Qual é o próximo ônibus que sai? A moça do guichê da rodoviária disse o nome de uma cidade que começava com a letra “i” e tinha várias sílabas. Pode ser.
Não foi tão fácil quanto sua cabeça insensata imaginou, mas não foi tão difícil quanto seria para tanta gente menos jovem, menos esperta, menos desenrolada no trato.
No começo, matou a fome com coxinha fria da rodoviária. Mas em três dias conseguiu serviço em uma fazenda onde tinha um canto para dormir. Aos fins de semana fazia bico de engraxate, porque as unhas já pretas de terra não sabiam a diferença do preto da graxa.
Assim que matou a fome de paz, Jaime começou a visitar o puteiro e a igreja. No primeiro, seu dinheiro de engraxate ajudava a matar a fome de pele, saciada com os néctares que transbordavam dos corpos. Mas era nas paredes da igreja que encontrava uma reentrância com um entrelaçado de madeira e um ouvido ao seu dispor. E por mais que não soubesse transformar em palavras o que lhe cortava o peito durante as madrugadas, era lá que podia se permitir derramar as lágrimas salgadas que lhe tiravam o doce da vida. E assim, saciava alguma fome que não sabia nomear.
Um dia, chegou o primo (que nem era primo de verdade). Sobrinho do padrasto. Disse que o procuraram em hospitais, em delegacias. Você é louco? Abandonou todo mundo?
Mas eles é que o tinham abandonado. Jaime sabia que ninguém mataria suas fomes naquele lugar das vielas com marcas de tiro, dos policiais que o prensavam contra a parede, do barulho incessante da guerra de classes.
Não tinha volta nem desculpas. No máximo, uma foto para saciar a fome que os outros tinham de informação alheia. Os outros, que só aceitavam o horizonte que conseguiam enxergar. Os outros, que invejavam a coragem de Jaime e que talvez não soubessem que ela esteve sempre acompanhada de alguma imprudência. Porque o bom senso é inimigo do ímpeto. É preciso um pouco de loucura para romper os nós que atam – e que matam.
A conversa com a mãe foi por chamada de vídeo, o que era bom, porque permitia ver que a fumaça branca continuava a sair, e o coração continuava o mesmo gelo seco. Ouviu ofensas com a calma de quem sabe que as palavras duras não podiam superar o chilrear dos passarinhos da fazenda, nem o silêncio abafado da igreja, nem os gemidos das prostitutas.
Obrigado por tudo e por me dar o que comer. Jaime agradeceu à mãe, mas não se desculpou por partir. Talvez a violência das palavras fosse a única coisa que ela tinha aprendido ao longo da vida. Talvez ela apenas não soubesse outra forma de expressar os sentimentos. Mas não caberia a ele ensinar. Não depois de tudo que tinha acontecido naquela casa. Não depois do nada que havia crescido e se enrijecido naquela família.
Quando o primo foi embora, Jaime percebeu que havia matado a fome de desfecho. Comeu o adeus com farofa e mastigou com força a dureza do passado. Conseguiu engolir a secura da vida amaciando-a com um gole de cachaça.
Enquanto seguia para o quartinho da fazenda, sabia que logo sentiria fome de novo. Com certeza um buraco se abriria no estômago. Caberia a ele, e somente ele, decidir como preencher esses vazios.
Como surgiu este texto
A ideia deste texto surgiu a partir do prompt proposto pelo clube de escrita do qual participo mensalmente (a ideia era se inspirar em um texto do Diogo Ramos). A ideia inicial era algo que já havia pipocado em minha mente, mas a história do Jaime foi brotando na hora. Foi um texto que me deu bastante prazer em reescrever e trabalhar com as palavras. O que eu mais gosto é de como as situações da história vão acontecendo, como se os personagens tomassem vida própria.
Espero que tenha gostado. Fique à vontade para comentar suas impressões.