Recentemente, vivi um período de muitas leituras. Por algum motivo, empolguei-me com meus livros e devorei mais páginas do que meus hábitos, recheados de redes sociais, tinham me permitido nos últimos tempos.
Eu ainda estava lendo “Corações Sujos”, de Fernando Morais, quando fui à Feira do Livro em São Paulo (confesso que algo me incomoda no fato de se chamar A Feira do Livro, com esse artigo definido excludente, mas deixo o debate para outro momento).
Meu dia na Feira do Livro coincidiu com a palestra do escritor José Henrique Bertoluci, cujo livro me interessara ao ouvir um episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta. Diante de uma bancada da Editora Fósforo, quis o destino que eu me visse diante de três livros que estavam em minha lista mental: “O que é meu”, do autor supracitado; A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr e A Verdade vos Libertará, de Gabriela Biló com Medo e Delírio e Pedro Inoue.
Na apresentação de Bertoluci, o autor estava acompanhado de Julia de Souza, autora do livro John – que eu me senti na obrigação de comprar logo em seguida, garantindo ambas as cópias devidamente autografadas por seus autores.
A despeito do dispêndio financeiro (livros estão muito caros e não havia grandes descontos na feira), fiquei entusiasmado a me dedicar a essas leituras. Pude ainda aproveitar uma pequena folga no feriado estadual de 9 de julho, quando devorei as páginas finais do livro de Morais, assim como boa parte dos outros dois livros autografados – que não contêm muitas páginas, o que também facilitou. É claro, eu também admirei o livro da Gabriela Biló. É um livro de fotos, mas diz o lugar-comum que as imagens valem mais do que palavras, tal qual as barras de ouro do Silvio Santos “valem mais do que dinheiro”.
Os fatos jornalísticos e os pais do autor
Os livros “O que é meu” e “John” são unidos tematicamente por falarem sobre os pais dos autores. Bertoluci faz uma espécie de Raio-X da vida de seu pai, um caminhoneiro que desbravou os primeiros passos da Transamazônica e viveu dificuldades que sintetizam a vida do trabalhador brasileiro. Souza reflete sobre o processo de perda de memória de seu pai, que sofreu de demência antes de falecer.
Por outro lado, os outros dois livros que li no mesmo período tratam de fatos apurados jornalisticamente. Fernando Morais trata detalhadamente dos acontecimentos relacionados à formação da seita Shindo Renmei, formada pelos imigrantes japoneses que não aceitavam a derrota do Japão na Segunda Guerra e perseguiam os “corações sujos”, japoneses que aceitavam a falibilidade do imperador Hirohito. O livro da fotojornalista da Folha Gabriela Biló traz fotos selecionadas que retratam a história recente da política Brasil, desde as manifestações de junho de 2013, a ascensão de Bolsonaro, eleição de Lula e, por fim, os ataques de 8 de janeiro.
Neste exato momento, estou lendo O Prisioneiro do Céu, de Carlos Ruiz Zafón. Deixei de lado o romance do escritor Senegalês, que citei antes, para ler mais um da série “O Cemitério dos Livros Esquecidos”.
O texto de Zafón é maravilhoso, a história é curiosa, os personagens são completos. Mas tem algo que me faz bem neste livro, assim como em “A Sombra do Vento”. É algo egoísta: o protagonista se chama Daniel. Simples assim. A familiaridade com o nome traz uma espécie de conforto que eu nunca tive – porque não me lembro de ler outro livro fora da série de Zafón que seja protagonizado por um xará.
“Não é sobre você”... ou é?
O que não falta na literatura é autobiografia, autoficção, ou quaisquer outros gêneros que explorem a história do próprio autor, suas origens, sua família. E não há nada de errado nisso. Já vi cursos de escrita com orientações como “escreva sobre o que você sabe” ou “fale sobre o que está ao seu redor”. Talvez seja uma boa orientação para aqueles escritores brasileiros ingênuos que criam personagens chamados “James” e estudantes em escolas do Wisconsin, mas não precisa ser levado à máxima potência.
Foi sobre isso que a Fabiane Guimarães falou em seu último texto, “Escrever é sempre pessoal?” (autora de quem acabo de assistir a uma ótima aula, aliás). Dele, extraio um trecho:
“(...) tenho muito medo que a recente onda de popularidade da autoficção chute a imaginação ainda mais para escanteio. Não sei se é um zeitgeist desse século autocentrado, mas as pessoas querem falar sobre suas vidas, querem explorar as memórias íntimas, e sentem que essa é uma ótima forma de se conectar com o outro – e não há nada de errado com isso. Essa conexão, entretanto, não precisa partir da realidade para acontecer. Ela pode existir em um lugar muito mais imagético, que é a fronteira entre aquilo que foi vivido e o que foi puramente inventado”.
É esse mesmo mundo autocentrado que me faz gostar ainda mais de um livro cujo protagonista é meu homônimo. É esse mundo autocentrado que me faz escrever estas palavras, ainda que eu me esforce para que esta newsletter acrescente questões úteis a você, que me lê.
Foi inevitável usar a frase “não é sobre você” (anglicismo que já foi tema nesta página), pois ela é comumente usada para lembrar aos egoístas que o mundo é formado por muito mais experiências do que as suas.
É bom aproximar-se do texto e falar sobre o que nos é mais íntimo: nossas histórias, nossos sentimentos, nossa família. Talvez seja uma das melhores formas de praticar a escrita. Mesmo assim, creio ser fundamental ao bom escritor de ficção se afastar da trama e escrever sobre o que está em sua imaginação, sobre o que não está próximo.
Paradoxalmente, o ato de nos afastarmos daquilo que contamos pode nos aproximar ainda mais dos sentimentos que buscamos transmitir. E acredito que a escrita tem a importância de funcionar como resistência aos problemas do mundo. Quando todo mundo olha para o próprio umbigo, a literatura nos ajuda a olhar para o outro.
Canal da Fabiane Guimarães:
Fiquei pensando aqui: não gosto da ideia de escrever ficção porque acho que estou "mentindo", mas também não sinto que tenho muito para falar sobre mim (me achando desinteressante). Louco, né?